“Eu sou um homem livre”
A frase mais forte de uma conversa foi dita em meio a lágrimas emocionadas. A voz embargada contava o quanto havia vivido para estar ali.
De cabelos brancos, olhos claros e estatura baixa, apresentava uma fragilidade sem igual. Mas ‘frágil’ é tudo o que este homem não era.
Quase um século carregado de sofrimento, dor, angústia, fome e desesperança.
As rugas no seu rosto traziam toda a sua história. História essa que se fragmentava à uma das partes mais chocantes do mundo. Descendente de brasileiros e judeus, o senhor de 90 anos chamado Andor Stern sofreu na pele todo o ódio que era pregado no século XX.
Nasceu e viveu uma parte da infância no Brasil. A adolescência passou na Hungria e Polônia. Anos brilhantes perdidos ao trabalhar no campo de concentração mais conhecido dessa época: Auschwitz.
Foi separado dos familiares. Sozinho, com frio, com fome, com medo. Não sabia se no dia seguinte estaria vivo ou morto. Não sabia se seus parentes estavam vivos ou mortos.
Não tinha mais esperança de encontrá-los.
Os dias passavam arrastados e doloridos demais. Tudo o que ele queria era comer mais que um pedaço de pão, saber quando aquele sofrimento ia acabar.
“Eu só tinha fome. Não conseguia ter outros sentimentos a não ser fome”
Não conseguia nem pensar na família mais. Se ele pensasse, sofreria. E tudo o que não precisava era de mais sofrimento.
Durante o tempo preso, conseguiu fazer uma amizade. O apoio era mútuo e necessário para que se mantivessem vivos. Sofreram juntos todas as atrocidades que eram causadas naquele período.
Andor ainda tem o número 83892 gravado no braço. A tatuagem está completamente visível, sem necessidade de retoques físicos ou psicológicos. Porém as marcas são eternas na memória. Os locais, cheiros, cercas elétricas de arame farpado que viu tantas pessoas se jogarem continuam tendo espaço. As imagens continuam voltando.
“Minha mulher diz que eu ainda estou lá, e eu sinto que estou mesmo”, confirma, emocionado.
Quando voltou a Auschwitz com o autor do seu livro ‘uma estrela na escuridão’, ele achou estranho não ter cheiro de pessoas queimadas. Estava acostumado a sentir este aroma todos os dias, e por ser tão forte, não conseguia deixar de lado.
Ele dizia não estar vivo. Apenas existia. E o que existia dentro dele era apenas desesperança. Uma vez pensou em se jogar na cerca elétrica também. Era inverno, estava quase congelado. Ele correu para a morte, mas não conseguiu evitar de lembrar da mãe falando do Brasil. E ele queria voltar para esse país. Ele queria conhecer melhor o lugar que não pôde crescer. Era seu único desejo.
“Minha mãe dizia que os brasileiros eram calorosos, alegres e festivos. Não existia povo igual”
Rodeado de pessoas cinzas, ele não sabia o que era ter cor.
Mas acima de tudo, ele queria mais que apenas um pedaço de pão. Um dia, viu que ainda existia bondade nas pessoas. Um grupo junto a ele estava vendo um soldado alemão preparar seu lanche. Um farto pedaço de pão com manteiga. Todos eles se admiraram. Ao ver a cena, o soldado embrulhou o pão e deu a eles.
Mas ao mesmo tempo que existia bondade, a maldade e o ódio também eram ensinados desde cedo.
“Uma vez encontrei um menino. Devia ter uns 10 ou 11 anos. Ele tinha um pão em uma das mãos e uma maçã na outra. Perguntei se ele podia ceder um pedaço do pão dele, eu estava com fome. Ele se levantou, jogou as duas comidas no chão e pisou em cima, gritando em alemão ‘sai, seu porco nojento’. E eu fiquei triste porque ele tinha amassado toda aquela comida e eu só queria um pedaço”, relembra.
Andor foi libertado no dia 1 de Maio de 1945. O tempo que passou confinado como um escravo havia acabado. Hoje ele diz que é feliz. Conseguiu voltar ao Brasil. Estava cansado de pessoas cinzas. Queria cor e alegria, e encontrou aqui. Ele diz que foi um milagre ter sobrevivido. Ele diz também que pode fazer o que quiser. Dormir numa cama limpa, comer o que e quanto quiser, trabalhar no que o fizer bem…
“Eu posso andar pelas ruas pelo caminho que eu quiser… Eu sou um homem livre”.
