Vamos fazer uma experiência com o uso da imaginação? Muito bem. Quero que você feche os olhos e imagine sua última viagem onde esteve em contato com a natureza. Pode ter sido em alguma fazenda, praia ou parque florestal. Pense no gramado extenso, nas árvores, nas montanhas… ou então nas dunas de areia, nas ondas do mar e na brisa que soprava naquele dia. Imagine tudo do mesmo jeito que você viu naquele dia.
E aí? Conseguiu imaginar tudinho sem dificuldade? Primeiramente, é normal que você não se lembre de alguns detalhes, mas certas memórias perpetuam de maneira involuntária na nossa mente. A imaginação é o modo que nosso cérebro encontra de pintar quadros na nossa mente, portanto, não é preciso ter nenhuma memória fotográfica.
Porém, se você parou no meio do experimento por não conseguir ativar essa imaginação afetiva, pode ser que você sofra de uma condição chamada afantasia.
O que é?
O nome foi criado em 2015 pelo Professor Adam Zeman, neurologista cognitivo e comportamental da Universidade de Exeter (Inglaterra). Zeman se aprofundou no fenômeno pela primeira vez quando foi encaminhado a um paciente que havia “perdido” suas imagens visuais após uma operação cardíaca.
“Ele tinha uma imaginação ativa”, lembra Zeman. “Ele costumava dormir imaginando amigos e familiares. Após o procedimento cardíaco, ele não conseguia visualizar nada, seus sonhos tornaram-se avisuais – ele disse que ler era diferente porque antes ele entrava no mundo visual e isso não acontecia mais.”
A avaliação que Zeman fez de seu paciente levantou mais perguntas do que respostas. O homem podia descrever um castelo, podia dizer se a grama era verde claro ou escuro, mas ele relatou apenas saber essas respostas por vê-las na hora, não por imaginar os objetos previamente.
No entanto, nem todas as experiências de afantasia são iguais. Muitas pessoas sofrem de afantasia desde o nascimento, mas outras a adquiriram após uma lesão cerebral ou, às vezes, após períodos de depressão ou psicose. Por conviver a vida toda com essa condição, fica realmente difícil saber que ela existe e é um distúrbio.
Como funciona a ausência da imaginação visual?
Como o próprio nome já diz, pessoas que possuem esse distúrbio não têm o que chamamos de imaginação fértil. Em momentos criativos, por exemplo, pode-se haver uma enorme dificuldade para acompanhar o ritmo normal já que elas possuem pouca ou nenhuma capacidade de visualizar imagens mentais.
Para a maioria da população mundial, ver imagens no “olho da mente” é uma característica que vem de berço. Ao nos permitir reviver o passado e simular futuros hipotéticos, essas imagens visuais nos permitem interpretar de forma flexível e interativa os eventos que vivenciamos no mundo.
Na teoria, a imaginação parece desempenhar um papel crítico perante processos cognitivos essenciais como o pensamento, a memória e a atenção. Isso não quer dizer que pessoas com afantasia pensam diferente ou sofrem de amnésia, apesar de isso ser um certo mistério. Elas apenas não conseguem ligar o centro imaginativo do cérebro de modo voluntário como alguns conseguiram ao ler os primeiros parágrafos desse texto, por exemplo. Nesse caso, eventos mentais como os sonhos podem permanecem intactos já que são obra do subconsciente involuntário, mas alguns afantásicos como o paciente de Zimmer não possuem essa capacidade.
Um estudo conduzido dentro da própria Universidade de Exeter examinou voluntários com afantasia e descobriu que esses indivíduos têm mais probabilidade de trabalhar em indústrias científicas e matemáticas do que em setores criativos, mas isso não os impede de fazer arte, como foi provado em uma exposição de artistas afantásicos nas cidades de Exeter e Glasgow em 2019.
Por que isso acontece?
O cérebro possui uma rede de áreas cerebrais envolvidas na visualização. Isso inclui o córtex visual primário e uma área no fusiforme, próximo de uma região envolvida no reconhecimento facial. A rede também inclui partes dos lobos frontal e parietal, que geralmente estão envolvidos na tomada de decisões, memória de trabalho e atenção. As áreas de memória, incluindo o hipocampo e o lobo temporal medial, também parecem ser importantes.
Não se sabe exatamente o que leva a mente a ignorar a imaginação visual e partir para a imaginação descritiva, ou seja, baseada em palavras como adjetivos muitas vezes usados em histórias de ficção.
A desenhista e escritora Larissa Borges (@laribhaven) acredita que, apesar das imagens não aparecerem de modo concreto na mente dessas pessoas, descrever alguma coisa em uma história geralmente não é uma coisa natural se visto por um lado mais técnico.
“Conceitos são bem diferentes de objetos concretos. Um pintor consegue, às vezes, trazer pro real conceitos visuais mais facilmente que palavras”, disse, comparando a necessidade da escrita de levar o leitor até determinada cena com a necessidade da arte, que é causar sentimentos através de imagens reais.
“Pessoas com afantasia se relacionam com os conceitos mesmo que não consigam traduzir eles para uma imagem concreta, então um escritor tem que ser capaz de detalhar cenas e conceitos de um modo claro.”
A ideia de pegar um livro e ser incapaz de imaginar as paisagens que a história descreve parece ser estrangeira, mas pensando por esse lado, não é muito diferente do que normalmente fazemos. Não é sempre que conseguimos deitar e imaginar mundos diferentes de forma tão vívida: na maioria das vezes, lemos no automático.
O protagonista tem cabelos escuros, olhos cor de âmbar e corpo esguio. Ok, certo, isso já basta. Imaginar alguém ou algum ator no lugar essas descrições pode tornar a experiência mais palpável, mas isso não é totalmente necessário.
Como a afantasia age?
Uma boa parte nasce sem a capacidade de imaginar objetos, pessoas e paisagens, mas o estudo debate se a afantasia pode ser adquirida como um sintoma associado a danos neurológicos ou psicopatologias.
O impacto potencial da ausência de imagens visuais na cognição permanece desconhecido. Nenhuma pesquisa até agora verificou empiricamente se esse fenômeno se estende a outras experiências internas e processos mentais.
Porém, estudos realizados por Alexei J. Dawes, Rebecca Keogh, Thomas Andrillon e Joel Pearson para a revista científica britânica Nature provam que algumas predisposições podem ser reconhecidas na maioria dos voluntários. Infelizmente não se sabe ainda se a afantasia foi adquirida justamente por esses fatores listados abaixo:
Da amostra afantásica, 24% dos participantes relataram histórico de doença mental, 1% relataram histórico de epilepsia ou convulsões, 4% relataram doença neurológica, 9% relataram ter sofrido traumatismo craniano pelo menos uma vez e 0,7% relataram ter sofrido algum derrame.
A memória episódica de indivíduos afantásicos e a capacidade de imaginar eventos futuros são significativamente reduzidos em comparação com a população normal.
Será que isso quer dizer que indivíduos com afantasia são menos propensos a desenvolver problemas como a ansiedade, depressão e até mesmo traumas?
Os dados obtidos pelo estudo não apoiam a hipótese de que a ausência de imagens visuais pode oferecer qualquer tipo de proteção contra eventos estressantes. Apesar de não conseguirem imaginar imagens concretas, afantásicos podem sim sofrer com excesso de pensamentos, algo comumente ligado à ansiedade.
Você pode até não conseguir imaginar uma maçã, mas é fácil pensar em quantos problemas você ainda tem que resolver. Infelizmente, né?!
E aí? Conhece alguém com afantasia? Ou será que você se identificou com a matéria? Deixe seu comentário!
Fontes: Nature Magazine, Science Focus
Um comentário em “Imagine só: Afantasia e as imagens mentais”